quinta-feira, 29 de setembro de 2011

MENINGITES

MENINGITES


Define-se meningite como um processo inflamatório que acomete as leptomeninges, ou seja, uma fina membrana que reveste o cérebro. As meningites representam um grave problema na prática clínica, em especial na faixa etária pediátrica e é responsável, ainda hoje, por alta morbi-mortalidade. A identificação precoce do processo é fundamental para a instituição de medidas terapêuticas adequadas, em tempo hábil para prevenir graves seqüelas.


A grande maioria das meningites na infäncia é causada por bactérias, destacando-se a Neisseria meningitidis (meningococo), Haemophilus influenzae (hemófilo) e Streptococcus pneumoniae (pneumococo). No entanto, outros agentes bacterianos, incluindo-se o Mycobacterium tuberculosis (responsável pela tuberculose) assim como vírus (caxumba, enterovírus, paramixovírus, entre outros) podem compor o quadro etiológico das meningites.


Alguns aspectos importantes que devem ser ressaltados e que podem auxiliar na decisão terapêutica são : 1. Lembrar que o hemófilo predomina na faixa etária de 3 meses a 5 anos. Ultimamente, devido ao uso de vacinação específica para esta bactéria, a incidência tem caído; 2. Dos casos de meningite meningocócica na grande São Paulo, 70% são representados pelo meningococo do sorogrupo B; 30% pelo C, com menor incidência dos outros sorogrupos.


Fisiopatologia-

O início do processo caracteriza-se pela invasão do micro-organismo (vírus, bactéria, fungo) no sistema nervoso central, onde determinará a inflamação das leptomeninges. O pneumococo, o hemófilus e o meningococo possuem mecanismos capazes de inativar a IgA, uma imuneglobulina de defesa, que ocorre nas superfícies mucosas. O passo seguinte é inativar o mecanismo ciliar (proteção das mucosas) e atravessam a mucosa. Uma vez na corrente sangüínea, inativam o sistema de complemento (um importante sistema de defesa imunológica do organismo) e atingem o líqüido céfalo-raquidiano (líquor – LCR). Todas essas etapas são realizadas por elementos da cápsula polissacarídea. Uma vez no sistema nervoso central (SNC), a bactéria encontra facilidade para proliferar já que há pequena quantidade de leucócitos (glóbulos brancos, com função de defesa), anticorpos e complemento.

Diagnóstico-

A sintomatologia da meningite depende muito da idade, sendo sempre muito inespecífica em crianças de pouca idade. Em crianças maiores, dor de cabeça (cefaléia), febre, fotofobia (intolerância à luz), náuseas, vômitos, letargia, irritabilidade devem levar à suspeita diagnóstica. Alterações do comportamento e do estado de alerta de uma criança são manifestações muito importantes que levam ao diagnóstico de meningite.
Rigidez de nuca (em virtude da inflamação das meninges), abaulamento da fontanela (moleira) devido a hipertensão intra-craniana, sinais de Kernig e Brudzinski (ao se fletir a cabeça, a criança flete a perna já que ocorre estiramento das meninges, com dor) são evidências a favor de meningite e passa a ser obrigatória a punção do líquor para diagnóstico.
Podem ser observadas duas formas de apresentação :
1. Início insidioso, progressivo em um ou mais dias, sendo difícil precisar-se quando a doença começou (especialmente quando o agente é o hemófilus);
2. Início agudo e fulminante com progressão em poucas horas para sepse e meningite (o mais freqüente agente com tal apresentação é o meningococo).

Outras manifestações como lesões de pele (petéquias ou manchas hemorrágicas), convulsões (ocorrem em 25% dos casos), sinais neurológicos focais podem estar presentes.



Diagnóstico Laboratorial –

A punção lombar deve ser realizada sempre que houver a suspeita clínica de meningite. Com isso, podemos fazer o diagnóstico e ter elementos para diferenciar uma meningite bacteriana de uma meningite viral (chamada “meningite asséptica” ou meningite linfocitária). Uma contra-indicação formal para a punção lombar é a presença de infecção de pele no local da punção. Consideram-se contra-indicações relativas a presença de hipertensão intracraniana e crianças plaquetopênicas (plaquetas<50.000/mm3) pelo risco de sangramento. A tabela abaixo mostra os achados típicos das meningites bacterianas, comparados aos achados das meningites assépticas (virais) e das meningites tuberculosas. Tratamento – Nas meningites virais, o tratamento é de suporte já que os antibióticos não atuam sobre vírus. Nas meningites tuberculosas, opta-se por esquemas tríplices usualmente utilizados com sucesso (Rifampicina, Hidrazida e Pirazinamida). A base do tratamento das meningites bacterianas é a antibioticoterapia, que deve ser prontamente instituída. Em geral, o tratamento inicial é empírico, ou seja, começamos a administrar o antibiótico que é eficaz para o germe mais provável (dependendo da faixa etária, do quadro clínico, da epidemiologia) uma vez que o resultado de cultura demora 2 a 3 dias. Uma vez obtido o diagnóstico laboratorial, mantém-se ou modifica-se a antibioticoterapia. Princípios do tratamento: 1. A bactéria deve ser sensível à droga 2. A droga deve apresentar boa penetração liquórica e ser bactericida 3. A via, parenteral de preferência, deve garantir níveis séricos adequados 4. Nunca diminuir a dose empregada. 5. Estudar com cautela, as modificações da via de administração 6. A duração do tratamento deve depender do microorganismo responsável: a) meningococo- 7 a 10 dias b) hemófilo – 14 a 21 dias c) pneumococo- 14 a 21 dias d) enterobactérias- 21 dias e) estafilococo- 21 dias 7. Reavaliar o caso sempre que a evolução clínica não for favorável. As primeiras 72 horas de tratamento são críticas, pois as complicações tendem a ocorrer nesse período. Por esta razão, é aconselhável monitorar o paciente até que o quadro clínico se estabilize. Controle de Tratamento – O melhor parâmetro para a avaliação da eficácia terapêutica antimicrobiana é a evolução clínica do paciente. Quando a resposta é boa, não há necessidade de repetir-se a punção liquórica. No entanto, a piora clínica do quadro deve ser seguida de nova punção do LCR. Profilaxia dos Comunicantes –

Meningites por hemófilo e por meningococo exigem profilaxia dos contactantes.
Hemófilo-
A profilaxia é recomendada para todos os comunicantes domiciliares, incluindo adultos, em moradia em que haja pelo menos uma criança menor de 4 anos de idade (além do caso índice). A profilaxia é feita com Rifampicina na dose de 20mg/Kg/dia (máximo de 600mg/dia) em dose única diária, por 4 dias.
Meningococo-
Todos os comunicantes (domiciliares ou de creches e berçários) devem receber profilaxia preferentemente até 24 horas do diagnóstico do caso primário. A profilaxia não é rotineiramente recomendada para a equipe médica, exceto em caso de contacto íntimo, como respiração boca a boca, intubação, etc. A droga de escolha é a Rifampicina, na dose de 20mg/kg/dia (máximo de 600mg/dia) durante 2 dias. Durante a gestação, não se recomenda a rifampicina, que deve ser substituída por Ceftriaxone na dose de 50mg/kg em dose única.

PIELONEFRITE

Entenda o que é a pielonefrite, uma infecção urinária grave que pode levar a sepse.


Chamamos de infecção urinária aquelas que acometem uma ou mais partes do trato urinário, ou seja, rins, ureteres, bexiga ou uretra. As infecções urinárias baixas são aquelas que acometem a bexiga e uretra. As infecções urinárias altas ocorrem quando há comprometimento de pelo menos um rim. As infecções da bexiga recebem o nome de cistite. As infecções da uretra são as uretrites. A infecções renais são chamadas de pielonefrite.



A cistite já foi abordada no texto: INFECÇÃO URINÁRIA (CISTITE). As uretrites são normalmente causadas por DSTs como a gonorréia (leia: GONORRÉIA E CLAMÍDIA). Neste texto vou falar um pouco mais sobre a pielonefrite.

A infecção dos rins acontece de duas maneiras. A principal via é a ascendente, quando bactérias da bexiga alcançam os ureteres e conseguem subir até os rins. Isto ocorre normalmente nas cistites não tratadas ou nos casos de colonização assintomática da bexiga por bactérias. Nem todas as pessoas relatam sintomas de cistite antes do surgimento da pielonefrite.


O segundo modo de infecção dos rins é pelo sangue, quando a bactéria em algum local do corpo, com nos casos de infecção da pele, viaja pela corrente sanguínea e se aloja no rim. Este tipo é bem menos frequente do que pela via ascendente.

A pielonefrite é um caso potencialmente grave, já que estamos falando da infecção de um órgão vital. É um quadro que pode ter gravidade semelhante a uma pneumonia. Se não tratado a tempo e corretamente, pode levar a sepse e morte (leia: O QUE É SEPSE E CHOQUE SÉPTICO?).

Além da cistite, que é o principal fator de risco, existem outros fatores que facilitam a infecção dos rins. Podemos citar o uso de cateteres vesicais (algália), cirurgias urológicas, anormalidades anatômicas do trato urinário e doenças da próstata que causam obstrução do fluxo da urina .

O diagnóstico da pielonefrite é feito através dos sinais e sintomas clínicos e dos exames de sangue e urina. Através da cultura de urina (urocultura) é possível identificar a bactéria responsável pela infecção e indicar o melhor antibiótico.



Não se deve pedir exames de urina para procurar bactérias se não houver sintomas de infecção urinária.

A presença de bactéria na urina é chamada de bacteriúria e não significa necessariamente alguma doença. Temos bactérias que colonizam várias partes do nosso corpo como boca, pele e intestino e não causam doença. O mais comum é termos uma urina estéril, ou seja, sem bactérias, porém, a simples presença destas, sem sintomas, não faz diagnóstico de infecção.



Não há como saber de antemão quais pessoas com bactéria na urina vão desenvolver cistite ou pielonefrite. Como a recolonização é muito comum, se formos tratar com antibióticos toda vez que houver bactérias na urina, estaremos facilitando o desenvolvimento de bactérias resistentes.

Portanto, NÃO SE TRATA BACTERIÚRIA ASSINTOMÁTICA, uma vez que a mesma não indica doença. O correto é tratar o paciente e não um resultado laboratorial.

Existem 3 exceções a esta regra, onde a bacteriúria assintomática está associada a um maior risco de pielonefrite:

- Mulheres grávidas: A presença de bactérias nas uroculturas aumenta o risco de pielonefrite, parto prematuro e recém-nascidos com baixo peso.

- Antes de procedimentos urológicos: Pacientes que serão submetidos a cirurgias ou procedimentos urológicos, devem tratar sua bacteriúria, uma vez que esta conduta reduz o risco de bacteremia e sepse pós-operatória.

- Pacientes imunossuprimidos.

Sintomas da pielonefrite

Os sintomas típicos da pielonefrite são febre, dor lombar, náuseas e vômitos. Podem haver também sintomas de cistite como dor ao urinar e vontade de ir ao banheiro com frequência, mesmo quando a bexiga está vazia. Outro sinal comum é a presença de sangue na urina (hematúria), que se apresenta normalmente como uma urina cor de Coca-Cola .

A pielonefrite é clinicamente dividida em 3 categorias:

- Pielonefrite aguda não complicada
- Pielonefrite aguda complicada
- Pielonefrite crônica

1) Pielonefrite aguda não complicada

Ocorre normalmente em mulheres jovens, sem antecedentes de doenças ou alterações na anatomia urológica.

O quadro clínico é de febre alta, calafrios, náuseas, vômitos e dor lombar. Os sintomas de cistite como ardência ao urinar podem ou não estar presentes.

Assim como nas cistites, a principal bactéria causadora de pielonefrite é a Escherichia coli .

Só há necessidade de internação em casos mais graves. Se o paciente tiver bom estado geral e for capaz de tomar antibióticos por via oral, o tratamento pode ser feito em casa.

2) Pielonefrite aguda complicada

A pielonefrite complicada é aquela que evolui com abscesso renal ou peri-renal, ou ainda necrose da papila renal.

Normalmente ocorre em pessoas com obstrução do trato urinário, bactérias resistentes aos antibióticos e em diabéticos.

O quadro clínico é igual ao da pielonefrite não complicada, porém apresenta pouca resposta aos antibióticos. Outra possibilidade é uma resposta apenas parcial com melhora do quadro mas com fadiga, mal estar e náuseas que duram por vários dias.

Pielonefrite que não melhora após antibioticoterapia apropriada deve ser estudadas com exames de imagens como tomografia computadorizada e ultra-som (ecografia).

3) Pielonefrite crônica

A pielonefrite crônica é um quadro de infecção urinária recorrente associada a má-formações urinárias, obstruções por cálculo renal ou refluxo vesico-ureteral (refluxo da urina da bexiga de volta para o ureter e rins). Costuma levar a insuficiência renal crônica, principalmente em crianças com refluxo urinário.

Qualquer quadro de infecção urinária deve ser sempre tratado com antibióticos. Medicamentos ditos "naturais" podem proporcionar alívio temporário, porém, apenas postergam o tratamento correto do problema.

Complicações da pielonefrite

Como já referido, se a pielonefrite não for tratada corretamente com antibióticos, existe um risco grande de evolução para sepse grave e óbito.

Outro problema da pielonefrite, principalmente se recorrente, é a lesão permanente do rim. Pacientes com pielonefrite crônica podem evoluir com insuficiência renal terminal e necessitar de hemodiálise


Leia o texto original no site MD.Saúde: PIELONEFRITE | INFECÇÃO URINÁRIA | Sintomas e tratamento http://www.mdsaude.com/2009/01/pielonefrite-infeccao-dos-rins.html#ixzz1ZMaMof2m

sábado, 10 de setembro de 2011

Saúde: conceito e atribuições do Sistema Único de Saúde

Saúde: conceito e atribuições do Sistema Único de Saúde

INTRODUÇÃO

Diante do enunciado do art. 196 da CF, o qual considera a saúde como resultante de condições biológicas, sociais e econômicas, quais são as atribuições do Sistema Único de Saúde, como setor da Administração Pública? É o que pretendemos discutir neste trabalho.

O direito à saúde, nos termos do art. 196 da CF, pressupõe que o Estado deve garantir não apenas serviços públicos de promoção, proteção e recuperação da saúde, mas adotar políticas econômicas e sociais que melhorem as condições de vida da população, evitando-se, assim, o risco de adoecer. Nesses termos quais as atribuições do SUS e o que compete a outros setores da Administração Pública? Quais os limites para a satisfação desse direito, de conceito tão amplo? A Administração Pública, na saúde, deve garantir tudo para todos?

Quanto a garantir saúde para "todos", dúvidas não há, tendo em vista que a Constituição determina seja o seu acesso universal. E o que cabe no "tudo"? Se inúmeras são as causas que determinam e interferem com a saúde, qual a incumbência da saúde como um setor da Administração Pública?

E no SUS, quais os medicamentos que devem ser garantidos? Quais exames, equipamentos, tecnologias, produtos que devem ser incorporados? Essas questões são de difícil demarcação, exigindo do Poder Público, da sociedade, dos conselhos de saúde, estudos e decisões complexas por lidar, em última instância, com a vida humana, direito fundamental e indisponível.

Pretendemos aqui, instigar e lançar o desafio da discussão desse tema que necessita ser aprofundado pelos estudiosos e especialistas em saúde pública, principalmente quando o Sr. Procurador Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles -- na ADIn n. 3087-6/600-RJ [01] -- opinou pela constitucionalidade de Lei Estadual, defendendo a tese de que gastos com alimentação devem ser realizados com os recursos da saúde por ser a alimentação uma das causas que interfere com a saúde humana.

DA CONCEITUAÇÃO DO DIREITO À SAUDE

Com a Constituição de 1988, o direito à saúde foi elevado à categoria de direito subjetivo público, num reconhecimento de que o sujeito é detentor do direito e o Estado o seu devedor, além, é obvio, de uma responsabilidade própria do sujeito que também deve cuidar de sua própria saúde e contribuir para a saúde coletiva [02]. Hoje, compete ao Estado garantir a saúde do cidadão e da coletividade.

Diante do conceito trazido pela Constituição de que "saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", abandonou-se um sistema que apenas considerava a saúde pública como dever do Estado no sentido de coibir ou evitar a propagação de doenças que colocavam em risco a saúde da coletividade [03] e assumiu-se que o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais, além da prestação de serviços públicos de promoção, prevenção e recuperação. A visão epidemiológica da questão saúde-doença, que privilegia o estudo de fatores sociais, ambientais, econômicos, educacionais que podem gerar a enfermidade, passou a integrar o direito à saúde.

Esse novo conceito de saúde considera as suas determinantes e condicionantes (alimentação, moradia, saneamento, meio ambiente, renda, trabalho, educação, transporte etc.), e impõe aos órgãos que compõem o Sistema Único de Saúde o dever de identificar esses fatos sociais e ambientais e ao Governo o de formular políticas públicas condizentes com a elevação do modo de vida da população.

Em trabalho [04] escrito anteriormente, havia comentado que não se deve entender a saúde apenas como fenômeno puramente biológico, uma vez que ela também é resultante de condições sócio-econômicas e ambientais, devendo a doença ser considerada, no dizer de Giovanni Berlinguer [05], como ‘um sinal estatisticamente relevante e precocemente calculável, de alterações do equilíbrio homem-ambiente, induzidas pelas transformações produtivas, territoriais, demográficas e culturais, incontroláveis nas suas conseqüências, além de sofrimento individual e de desvio duma normalidade biológica ou social’.

Assim, não se pode mais considerar a saúde de forma isolada das condições que cercam o indivíduo e a coletividade. Falar, hoje, em saúde sem levar em conta o modo como o homem se relaciona com o seu meio social e ambiental é voltar à época em que a doença era um fenômeno meramente biológico, desprovido de qualquer outra interferência que não fosse tão somente o homem e seu corpo.

Corroborando essa tese, trazemos novamente relato de Giovanni Berlinguer [06] sobre o sistema de saúde nacional da Inglaterra, que é universal e igualitário. Descreve o autor que, numa pesquisa feita naquele país, ficou demonstrado que a mortalidade infantil em seu conjunto regrediu consideravelmente; entretanto, essa regressão não se alterou, durante vinte e cinco anos, entre as cinco classes da população. A explicação, afirma o autor, deve estar no fato de que são as "condições de trabalho, de ambiente e de higiene, que eliminam ou reduzem a eficácia da extensão e da profundidade das atividades sanitárias" e essas condições, esclarece ele, não se alteraram, naquele país, no decorrer dos vinte e cinco anos.

Mesmo que o sistema de saúde tenha atuação preventiva e curativa absolutamente iguais, as pessoas que vivem em situação precária, fatalmente serão mais acometidas de doenças e outros agravos, ainda que o sistema de saúde lhes ofereça um excelente serviço de recuperação.

Daí dizer-se que sem redução das desigualdades sociais, sem a erradicação da pobreza e a melhoria do modo de vida, o setor saúde será o estuário de todas as mazelas das más políticas sociais e econômicas. E sem essa garantia de mudança dos fatores condicionantes e determinantes não se estará garantido o direito à saúde, em sua abrangência constitucional.

Por isso o direito à saúde, nos termos do art. 196 da CF pressupõe a adoção de políticas sociais e econômicas que visem: a) à redução do risco de doenças e outros agravos; e b) ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a sua promoção, proteção e recuperação. [07]

Entretanto, a amplitude da dicção do art. 196 e essa nova forma de conceituar saúde nos leva a refletir sobre qual será o campo de atuação do Sistema Único de Saúde, como setor da Administração Pública, na prestação de serviços que garantam a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

O primeiro enunciado do artigo – execução de políticas sociais e econômicas protetivas da saúde [08] – vincula-se a planos e programas do Estado Federal (norma programática) que devem assegurar ao indivíduo e à coletividade tudo aquilo que possa ser considerado essencial para a satisfação da saúde física, mental, psicológica, moral e social: --morar bem, ter salário digno, ter mais lazer, boa educação, alimentação suficiente, segurança, previdência etc.

Nesse ponto, a fluidez dessa determinação constitucional exige demarcação, tendo em vista a sua vastidão, subjetividade e correlação com uma infinidade de outras áreas de prestação de serviços públicos, para que possamos, no interior da Administração Pública, delimitar o campo de atuação do Sistema Único de Saúde, definido constitucionalmente (art. 198 da CF) como o conjunto de ações e serviços públicos, organizados em rede regionalizada e hierarquizada, de execução das três esferas do governo [09].

O direito à saúde -- como serviço público colocado à disposição da coletividade pelo SUS, – não pode pretender garantir ao indivíduo a melhoria de sua renda, de sua moradia, de sua alimentação, educação, sob o argumento de que a Constituição assevera que o direito à saúde deve ser efetivado mediante a adoção de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de adoecer. Esses fatores são determinantes para o bem estar físico, mental e social do cidadão, mas não estão a cargo do setor saúde.

Afirmamos em obra anterior [10] que o "direito à saúde assim considerado permitiria, por exemplo, que pessoas sujeitas ao estresse, a síndromes urbanas, à ansiedade, à predisposição genética para certas doenças pudessem acionar o Estado exigindo um trabalho menos estressante, uma cidade sem medos, meio urbano silencioso e solidário, e toda a sorte de exames e cuidados para a prevenção de doenças de herança genética", sob a invocação do direito à saúde, onerando o Sistema Único de Saúde.

Desse modo, entendemos que para a melhor compreensão do disposto no art. 196 é preciso desdobrá-lo em duas partes, como mencionado acima:

a) a primeira de linguagem mais difusa que corresponde a programas sociais e econômicos que visem à redução coletiva de doenças e seus agravos, com melhoria da qualidade de vida do cidadão. Esta primeira parte diz respeito muito mais à qualidade de vida, numa demonstração de que saúde tem conceito amplo que abrange o bem estar individual, social, afetivo, psicológico, familiar etc. e não apenas a prestação de serviços assistenciais; e

b) a segunda parte, de dicção mais objetiva, obriga o Estado a manter, na forma do disposto nos arts. 198 e 200 da Constituição e na Lei n. 8.080/90, ações e serviços públicos de saúde que possam promover a saúde e prevenir, de modo mais direto, mediante uma rede de serviços regionalizados e hierarquizados, os riscos de adoecer (assistência preventiva) e recuperar o indivíduo das doenças que o acometem (assistência curativa).

Vê-se, pois, a dificuldade da delimitação do termo "saúde" quando adentramos nos campos: a) da prestação de serviços públicos de saúde a serem realizados pelos órgãos e entidades que compõem o SUS; b) do financiamento da saúde; e c) das condições sociais e econômicas que interferem com a saúde.

O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Pela dicção dos arts. 196 e 198 da CF, podemos afirmar que somente da segunda parte do art. 196 se ocupa o Sistema Único de Saúde, de forma mais concreta e direta, sob pena de a saúde, como setor, como uma área da Administração Pública, se ver obrigada a cuidar de tudo aquilo que possa ser considerado como fatores que condicionam e interferem com a saúde individual e coletiva. Isso seria um arrematado absurdo e deveríamos ter um super Ministério e super Secretarias da Saúde responsáveis por toda política social e econômica protetivas da saude.

Se a Constituição tratou a saúde sob grande amplitude, isso não significa dizer que tudo o que está ali inserido corresponde a área de atuação do Sistema Único de Saúde.

Repassando, brevemente, aquela seção do capítulo da Seguridade Social, temos que: -- o art. 196, de maneira ampla, cuida do direito à saúde; -- o art. 197 trata da relevância pública das ações e serviços de saúde, públicos e privados, conferindo ao Estado o direito e o dever de regulamentar, fiscalizar e controlar o setor (público e privado); -- o art. 198 dispõe sobre as ações e os serviços públicos de saúde que devem ser garantidos a todos cidadãos para a sua promoção, proteção e recuperação, ou seja, dispõe sobre o Sistema Único de Saúde; -- o art. 199, trata da liberdade da iniciativa privada, suas restrições (não pode explorar o sangue, por ser bem fora do comércio; deve submeter-se à lei quanto à remoção de órgãos e tecidos e partes do corpo humano; não pode contar com a participação do capital estrangeiro na saúde privada; não pode receber auxílios e subvenções, se for entidade de fins econômicos etc.) e a possibilidade de o setor participar, complementarmente, do setor público; -- e o art. 200, das atribuições dos órgãos e entidades que compõem o sistema público de saúde. O SUS é mencionado somente nos arts. 198 e 200.

A leitura do art. 198 deve sempre ser feita em consonância com a segunda parte do art. 196 e com o art. 200. O art. 198 estatui que todas as ações e serviços públicos de saúde constituem um único sistema. Aqui temos o SUS. E esse sistema tem como atribuição garantir ao cidadão o acesso às ações e serviços públicos de saúde (segunda parte do art. 196), conforme campo demarcado pelo art. 200 e leis específicas.

O art. 200 define em que campo deve o SUS atuar. As atribuições ali relacionadas não são taxativas ou exaustivas. Outras poderão existir, na forma da lei. E as atribuições ali elencadas dependem, também, de lei para a sua exeqüibilidade.

DOS OBJETIVOS E ATRIBUIÇÕES DO SUS

Em 1990, foi editada a Lei n. 8.080/90 que, em seus arts. 5º e 6º [11], cuidou dos objetivos e das atribuições do SUS, tentando melhor explicitar o art. 200 da CF (ainda que, em alguns casos, tenha repetido os incisos daquele artigo, tão somente).

São objetivos do SUS: a) a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; b) a formulação de políticas de saúde destinadas a promover, nos campos econômico e social, a redução de riscos de doenças e outros agravos; e c) execução de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, integrando as ações assistenciais com as preventivas, de modo a garantir às pessoas a assistência integral à sua saúde.

O art. 6º, estabelece como competência do Sistema a execução de ações e serviços de saúde descritos em seus 11 incisos.

O SUS deve atuar em campo demarcado pela lei, em razão do disposto no art. 200 da CF e porque o enunciado constitucional de que saúde é direito de todos e dever do Estado, não tem o condão de abranger as condicionantes econômico-sociais da saúde, tampouco compreender, de forma ampla e irrestrita, todas as possíveis e imagináveis ações e serviços de saúde, até mesmo porque haverá sempre um limite orçamentário e um ilimitado avanço tecnológico a criar necessidades infindáveis e até mesmo questionáveis sob o ponto de vista ético, clínico, familiar, terapêutico, psicológico.

Será a lei que deverá impor as proporções, sem, contudo, é obvio, cercear o direito à promoção, proteção e recuperação da saúde. E aqui o elemento delimitador da lei deverá ser o da dignidade humana.

Lembramos, por oportuno que, o Projeto de Lei Complementar n. 01/2003 -- que se encontra no Congresso Nacional para regulamentar os critérios de rateio de transferências dos recursos da União para Estados e Municípios – busca disciplinar, de forma mais clara e definitiva, o que são ações e serviços de saúde e estabelecer o que pode e o que não pode ser financiado com recursos dos fundos de saúde. Esses parâmetros também servirão para circunscrever o que deve ser colocado à disposição da população, no âmbito do SUS, ainda que o art. 200 da CF e o art. 6º da LOS tenham definido o campo de atuação do SUS, fazendo pressupor o que são ações e serviços públicos de saúde, conforme dissemos acima. (O Conselho Nacional de Saúde e o Ministério da Saúde [12] também disciplinaram o que são ações e serviços de saúde em resoluções e portarias).

O QUE FINANCIAR COM OS RECURSOS DA SAÚDE?

De plano, excetuam-se da área da saúde, para efeito de financiamento, (ainda que absolutamente relevantes como indicadores epidemiológicos da saúde) as condicionantes econômico-sociais. Os órgãos e entidades do SUS devem conhecer e informar à sociedade e ao governo os fatos que interferem na saúde da população com vistas à adoção de políticas públicas, sem, contudo, estarem obrigados a utilizar recursos do fundo de saúde para intervir nessas causas.

Quem tem o dever de adotar políticas sociais e econômicas que visem evitar o risco da doença é o Governo como um todo (políticas de governo), e não a saúde, como setor (políticas setoriais). A ela, saúde, compete atuar nos campos demarcados pelos art. 200 da CF e art. 6º da Lei n. 8.080/90 e em outras leis específicas.

Como exemplo, podemos citar os servidores da saúde que devem ser pagos com recursos da saúde, mas o seu inativo, não; não porque os inativos devem ser pagos com recursos da Previdência Social. Idem quanto as ações da assistência social, como bolsa-alimentação, bolsa-família, vale-gás, renda mínima, fome zero, que devem ser financiadas com recursos da assistência social, setor ao qual incumbe promover e prover as necessidades das pessoas carentes visando diminuir as desigualdades sociais e suprir suas carências básicas imediatas. Isso tudo interfere com a saúde, mas não pode ser administrada nem financiada pelo setor saúde.

O saneamento básico é outro bom exemplo. A Lei n. 8.080/90, em seu art. 6º, II, dispõe que o SUS deve participar na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico. Por sua vez, o § 3º do art. 32, reza que as ações de saneamento básico que venham a ser executadas supletivamente pelo SUS serão financiadas por recursos tarifários específicos e outros da União, Estados, DF e Municípios e não com os recursos dos fundos de saúde.

Nesse ponto gostaríamos de abrir um parêntese para comentar o Parecer do Sr. Procurador Geral da República, na ADIn n. 3087-6/600-RJ, aqui mencionado.

O Governo do Estado do Rio de Janeiro, pela Lei n. 4.179/03, instituiu o Programa Estadual de Acesso à Alimentação – PEAA, determinando que suas atividades correrão à conta do orçamento do Fundo Estadual da Saúde [13], vinculado à Secretaria de Estado da Saúde. O PSDB, entendendo ser a lei inconstitucional por utilizar recursos da saúde para uma ação que não é de responsabilidade da área da saúde, moveu ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de cautelar.

O Sr. Procurador da República (Parecer n. 5147/CF), opinou pela improcedência da ação por entender que o acesso à alimentação é indissociável do acesso à saúde, assim como os medicamentos o são e que as pessoas de baixa renda devem ter atendidas a necessidade básica de alimentar-se.

Infelizmente, mais uma vez confundiu-se "saúde" com "assistência social", áreas da Seguridade Social, mas distintas entre si. A alimentação é um fator que condiciona a saúde tanto quanto o saneamento básico, o meio ambiente degradado, a falta de renda e lazer, a falta de moradia, dentre tantos outros fatores condicionantes e determinantes, tal qual mencionado no art. 3º da Lei n. 8.080/90 [14].

A Lei n. 8.080/90 ao dispor sobre o campo de atuação do SUS incluiu a vigilância nutricional e a orientação alimentar [15], atividades complexas que não tem a ver com o fornecimento, puro e simples, de bolsa-alimentação, vale-alimentação ou qualquer outra forma de garantia de mínimos existenciais e sociais, de atribuição da assistência social ou de outras áreas da Administração Pública voltadas para corrigir as desigualdades sociais. A vigilância nutricional deve ser realizada pelo SUS em articulação com outros órgãos e setores governamentais em razão de sua interface com a saúde. São atividades que interessam a saúde, mas as quais, a saúde como setor, não as executa. Por isso a necessidade das comissões intersetoriais previstas na Lei n. 8.080/90.

A própria Lei n. 10.683/2003, que organiza a Presidência da República, estatuiu em seu art. 27, XX ser atribuição do Ministério da Saúde: a) política nacional de saúde; b) coordenação e fiscalização do Sistema Único de Saúde; c) saúde ambiental e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva, inclusive a dos trabalhadores e dos índios; d) informações em saúde; e) insumos críticos para a saúde; f) ação preventiva em geral, vigilância e controle sanitário de fronteiras e de portos marítimos, fluviais e aéreos; g) vigilância em saúde, especialmente quanto às drogas, medicamentos e alimentos; h) pesquisa científica e tecnológica na área da saúde. Ao Ministério da Saúde compete a vigilância sobre alimentos (registro, fiscalização, controle de qualidade) e não a prestação de serviços que visem fornecer alimentos às pessoas de baixa renda.

O fornecimento de cesta básica, merenda escolar, alimentação a crianças em idade escolar, idosos, trabalhadores rurais temporários, portadores de moléstias graves, conforme previsto na Lei do Estado do Rio de Janeiro, são situações de carência que necessitam de apoio do Poder Público, sem sombra de dúvida, mas no âmbito da assistência social [16] ou de outro setor da Administração Pública e com recursos que não os do fundo de saúde. Não podemos mais confundir assistência social com saúde. A alimentação interessa à saúde, mas não está em seu âmbito de atuação.

Tanto isso é fato que a Lei n. 8.080/90, em seu art. 12, estabeleceu que "serão criadas comissões intersetoriais de âmbito nacional, subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde, integradas pelos Ministérios e órgãos competentes e por entidades representativas da sociedade civil", dispondo seu parágrafo único que "as comissões intersetoriais terão a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde". Já o seu art. 13, destaca, algumas dessas atividades, mencionando em seu inciso I a "alimentação e nutrição".

O parâmetro para o financiamento da saúde deve ser as atribuições que foram dadas ao SUS pela Constituição e por leis específicas e não a 1º parte do art. 196 da CF, uma vez que os fatores que condicionam a saúde são os mais variados e estão inseridos nas mais diversas áreas da Administração Pública, não podendo ser considerados como competência dos órgãos e entidades que compõe o Sistema Único de Saúde.